Tempo de leitura: 11 minutos
Laís Flávia Nunes Lemes é doutoranda em Medicina Tropical pelo Núcleo de Medicina Tropical da Universidade de Brasília (UnB), Mestre em farmacologia, toxicologia e produtos naturais pelo programa de Ciências da Saúde da UnB, graduada em farmácia pela Universidade Católica de Brasília. Atualmente atua como docente em uma universidade privada do Distrito Federal e também como subcoordenadora do comitê de ética e pesquisa da instituição a que é vinculada. Trabalha com as disciplinas de farmacognosia e fitoterapia.
Nesse artigo ela irá falar conosco sobre o rico universo da Fitoterapia, confiram!
Se olharmos o contexto histórico, as plantas medicinais foram uma das primeiras formas de tratamento utilizadas pelo homem. Há registro sobre o uso de plantas medicinais ainda em papiros. Mesmo com a evolução das civilizações e com o processo de industrialização, as plantas medicinais continuam tendo um papel muito importante na saúde da população, sendo utilizadas na forma de remédios caseiros ou mesmo de fitoterápicos, constituindo o que reconhecemos como fitoterapia ‘tratamentos baseados no uso de plantas ou seus derivados’.
A fitoterapia constitui uma importante estratégia de promoção da saúde, principalmente na atenção primária, permitindo o resgate de valores culturais e ampliação do acesso a formas de tratamento e prevenção, além disso tem boa aceitação pela população.
A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) considera as plantas medicinais e fitoterápicos um importante instrumento de promoção da saúde, considerando que de 70% a 90% da população nos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, utilizam plantas medicinais ou seus derivados como forma de cuidado à saúde.
Portanto, temos um cenário em que uma parte significativa da população tem acesso a fitoterapia e fazem uso dessa forma de tratamento. Isso cria também um cenário importante de atuação profissional, independentemente do nível de assistência à saúde, na perspectiva de que o profissional de saúde, com destaque para o farmacêutico, pode orientar a utilização correta de plantas medicinais e fitoterápicos, prescrever ou indicar plantas medicinais e fitoterápicos de acordo com as delimitações de cada conselho de classe, prevenir riscos relacionados ao uso irracional, orientar sobre os riscos de interações e uso incorreto de espécies vegetais, entre outros fatores.
PERFIL DAS PESSOAS QUE TEM INTERESSE POR FITOTERAPIA
Embora no século XX tenha sido marcado por grande avanço na produção de medicamentos sintéticos, o uso de plantas medicinais com base no uso popular e tradicional continuou sendo uma prática generalizada na população, muitas vezes pela relação cultural ou mesmo facilidade de acesso.
Atualmente, outros fatores têm contribuído para o aumento da procura pela fitoterapia, entre esses fatores podemos citar a maior procura por produtos considerados naturais, mudanças no estilo de vida, tendência ao uso de estratégias complementares de saúde. Podemos observar dois perfis gerais de usuários – aqueles que reconhecem a fitoterapia como uma possibilidade terapêutica e utilizam dela para ampliar a possibilidade de tratamentos e aqueles que dão preferência a fitoterapia porque procuram formas mais naturais de tratamentos, acreditando no menor desenvolvimento de efeitos adversos e toxicidade.
CONTEXTO NACIONAL RELACIONADO A FITOTERAPIA
A Política Nacional de Práticas Integrativas Complementares (PNPIC) no SUS foi aprovada no ano de 2006 e consistiu em um marco importante para valorização do uso de plantas medicinais e fitoterápicos, reforçando a fitoterapia como uma forma complementar de cuidado à saúde.
Diante da relevância da fitoterapia e pensando em expandir o uso de plantas medicinais e fitoterápicos, conforme preconizado pela OMS, considerando critérios de qualidade, segurança, eficácia e eficiência, no mesmo ano foi lançada a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) que apresenta em suas diretrizes desde a valorização cultural do uso de plantas medicinais, busca de evidencias sobre o uso, até incentivo para cadeia produtiva e desenvolvimento da indústria de fitoterápicos com foco em plantas medicinas nacionais.
Entre os benefícios trazidos pela PNPMF podemos citar a Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse do SUS (RENISUS) que lista 71 plantas nativas ou adaptadas ao território nacional e a confecção de monografias com evidencias sobre o uso dessas plantas, assim como a introdução de 12 fitoterápicos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais RENAME de 2012.
DESAFIOS DA ÁREA E COMO TÊM SIDO ENFRENTADOS
Uma das dificuldades encontradas e que compromete o uso racional da fitoterapia é a obtenção de informações de fontes confiáveis. Temos muitos usos baseados no conhecimento popular ou tradicional, porém para uma terapêutica racional devemos basear em dados de segurança, eficácia/efetividade para escolha da terapia apropriada para cada paciente, tendo embasamento para não submeter o paciente a tratamentos que não apresentem benefícios comprovados, assim como reconhecer também potenciais riscos para poder minimizá-los.
Pensando nisso, foi publicado no ano de 2016 o Memento de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira. Consiste em um documento para consulta rápida que visa orientar a prescrição de plantas medicinais e fitoterápicos, com conteúdos baseados em evidências científicas para ajudar na conduta e escolha terapêutica do profissional prescritor. O memento está disponível no site da ANVISA e é acessível a todos profissionais de saúde e também para população. Recomendo baixar o memento e ter como uma fonte de consulta confiável
Em paralelo ao nível de evidência e informações confiáveis, outro fator que pode ser observado como limitante é o de que a maioria dos medicamentos fitoterápicos comercializados no Brasil não são de plantas nativas, relacionado a falta de estudos clínicos com plantas nacionais e também limitações do setor produtivo e interesse da indústria nacional, por isso as diretrizes estabelecidas na PNPMF são tão importantes.
Diretrizes da PNPMF visam o desenvolvimento de pesquisas e do setor produtivo a fim de reduzir esses problemas. As farmácias vivas e farmácias de manipulação constituem também formas de minimizar essas diferenças, seguindo normativas específicas que levam em consideração a qualidade, segurança, eficácia/efetividade.
Alinhado a esse desenvolvimento, no ano de 2011 foi publicado pela ANVISA o Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira 1ª edição. Esse formulário é voltado principalmente às práticas de manipulação e dispensação de fitoterápicos com informações sobre manipulação, oficializando as formulações para manipulação de forma padronizada.
Em 2018 foram publicadas atualizações ao texto do Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira, 1º edição por meio do 1º Suplemento do Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira.
A seleção das espécies vegetais apresentadas nesses formulários foi realizada dando preferência para as constantes da relação de espécies vegetais de interesse do SUS (RENISUS). No Formulário estão descritas informações que incluem desde a forma correta de preparo, as indicações e restrições de uso de cada espécie. As versões do formulário podem ser encontradas no site da ANVISA .
Outro fator a ser levado em consideração é a falsa ideia que existe na população de que pensar que plantas medicinais e fitoterápicos por serem naturais não fazem mal. As plantas medicinais e os fitoterápicos também podem apresentar toxicidade, efeitos adversos, interações medicamentosas e outros.
Pensando nisso, é essencial que os profissionais de saúde tenham conhecimento na área para poder orientar a população. Aí entra o outro desafio, muitas vezes o contato de médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde com a área de fitoterapia durante a graduação é muito escassa ou até mesmo ausente, não despertando nesses profissionais interesse na área ou não fornecendo base suficiente para atuação. Entre os profissionais de saúde o farmacêutico acaba sendo um dos mais qualificados nesse sentido, porque tem maior contato com a área durante sua formação, estudando desde requisitos de qualidade, segurança, eficácia e eficiência do uso.
A qualificação profissional e interesse é essencial para romper esse último desafio.
PERSPECTIVA DE ATUAÇÃO DO FARMACÊUTICO
As plantas medicinais e a maioria dos fitoterápicos são considerados como isentos de prescrição, e de acordo com a Resolução/CFF 586/2013 regulamenta a prescrição farmacêutica “O farmacêutico poderá realizar a prescrição de medicamentos e outros produtos com finalidade terapêutica, cuja dispensação não exija prescrição médica, incluindo medicamentos industrializados e preparações magistrais – alopáticos ou dinamizados -, plantas medicinais, drogas vegetais e outras categorias ou relações de medicamentos que venham a ser aprovadas pelo órgão sanitário federal para prescrição do farmacêutico.” Mesmo antes dessas resoluções o farmacêutico já poderia legalmente indicar plantas medicinais e fitoterápicos isentos de prescrição, considerando a Resolução/CFF nº 546/2011, desde que demonstrasse qualificação e segurança na área.
Portanto, o farmacêutico pode prescrever medicamentos fitoterápicos isentos de prescrição, produtos tradicionais fitoterápicos, incluindo as drogas vegetais, assim como as plantas medicinais e contribuir para saúde da população, principalmente pensando nos problemas de saúde autolimitados. Porém é importante deixar claro que o exercício da prescrição/indicação deve ser fundamentado em conhecimento e habilidades clínicas. Para isso o farmacêutico precisa de qualificar e estar continuamente se atualizando sobre o tema. De acordo com a Resolução/CFF 585/2013 “a prescrição farmacêutica é uma atribuição clínica do farmacêutico e deverá ser realizada com base nas necessidades de saúde do paciente, nas melhores evidências científicas, em princípios éticos e em conformidade com as políticas de saúde vigentes”.
Ainda que não atue diretamente com a prescrição farmacêutica, reconhecendo que aproximadamente 80% da população faz uso de plantas medicinais ou fitoterápicos em diferentes formas de apresentação, o conhecimento do farmacêutico na área de fitoterapia também contribui para identificação de situações que podem interferir na terapêutica, como interações medicamentosas, efeitos adversos, toxicidade. Sendo um diferencial para atuação independente do nível de assistência que atue.
Pensando no setor produtivo, com os incentivos para a indústria farmacêutica nacional, essa área também tem se tornado promissora do ponto de vista industrial, já que tem um mercado consumidor também crescente e exigente. Nas farmácias de manipulação já observa-se maior demanda na manipulação de fitoterápicos e derivados vegetais, exigindo do farmacêutico conhecimento técnico e clínico na área. No SUS o farmacêutico é o ponto chave no estabelecimento das farmácias vivas, na propagação do uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos e aproximação da comunidade aos serviços de saúde.
Considerando os aspectos supracitados, considero a fitoterapia não apenas como uma área de atuação para o farmacêutico, mas também como um conhecimento que vem agregar valor independente da sua área de atuação profissional.
Referências
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica. Política e Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos / Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Assistência Farmacêutica. – Brasília: Ministério da Saúde, 2016. 190 p.
Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Formulário de Fitoterápicos da Farmacopéia Brasileira / Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Brasília: Anvisa, 2011. 126p.
Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Formulário de Fitoterápicos da Farmacopéia Brasileira / Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Primeiro Suplemento do Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira, 1ª edição. Brasília, Anvisa, 2018.